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Cecília, de Henrique Pousão

No passado 25 de abril, TUGA-LUGO-LENDO juntou-se para “ler” pintura portuguesa da segunda metade do século XIX e primeira do XX. RAMIRO ÁLVAREZ leu-lhe este texto à Cecília do Henrique Pousão, conseguindo que ela desistisse da própria leitura e pousasse o olhar na malta ali congregada. Obrigados, Ramiro.

Liguei o computador, à procura de um quadro de autor português do século dezanove e, pronto, o meu olhar deu no olhar da menina que me mirava com essa tranquilidade sossegada, como se se me oferecesse para ajudar-me na tarefa.

O quadro, de Henrique Pousão (1859-1884) representa uma rapariga, vestida à napolitana, orando junto a um pilar da igreja de Santo António dos Portugueses.

O primeiro que me chamou a atenção foram as texturas da pintura: o mármore das paredes, a madeira da cadeira, o tecido das teias, e a simbologia da coluna sólida, firme e duradoura.

E o olhar da menina.

 

Procurei o nome do quadro. Esperava algo como “menina orante” ou “napolitana com vestido de festa”, por isso fiquei surpreendido com o nome: “Cecília”. Não era uma simples pintura, a menina era alguém real.

Li a biografia do Henrique Pousão e soube da sua arte, da sua curta vida de vinte e cinco anos, das suas viagens à França e a Itália. Mas o que eu procurava era a ração daquele olhar tranquilo de Cecília, o porquê do nome personalizado do quadro, a relação de modelo e pintor.

Mas na Internet não havia explicações; apenas o quadro uma e outra vez; uma e outra vez o olhar tranquilo ao pé da coluna sólida, firme e duradoira. E decidi buscar na própria pintura, interrogar à Cecília por se ela me revelava qualquer coisa.

E olhei no olhar que me olhava.

E entrei na igreja de Santo António dos Portugueses um dia de festa. Uma igreja, sem dúvida, italiana. A menina lia no seu breviário, alheia ao rebuliço da gente, encostada na sua coluna sólida, firme e duradoira. O pintor achegou-se até ela e mirou-a desde todos os ângulos, estudando a sua face, a sua postura.

– Ó menina, olha para mim que quero fazer o teu retrato.

E a menina, surpreendida, levantou os olhos para o pintor que pegou na caneta e, rapidamente, começou a traçar riscas no papel.

O pintor trabalhava e a menina olhava o pintor trabalhar. O olhar de surpresa tornou-se olhar confiado, com uma pitada de picardia.

– Ó pintor, bem sei o que tu procuras que eu também tenho vinte e três anos e os teus mesmos desejos… Mas não sou menina de brincadeiras e o amor que te ofereço é como esta coluna, sólido, firme e duradoiro.

O pintor imortalizou a menina com os seus pincéis e a menina deu-lhe alma ao quadro com os seus sentimentos.

Henrique Pousão morreu em Portugal dois anos mais tarde, de vinte e cinco anos. Cecília ficou para sempre neste quadro vivo, no museu nacional de Soares dos Reis, no Porto, a olhar a quem a olhe para contar-lhe do seu amor sólido, firme e duradoiro…