João Lopes Facal, Compostela, 2012.
Portugal es un pueblo de suicidas, tal vez un pueblo suicida. La vida no tiene para él sentido trascendente. Quieren vivir tal vez, sí, pero ¿para qué? Esta foi a conclusão a que chegou Unamuno depois de auscultar Portugal. Lembrava Dom Miguel os ilustres suicidas do país irmão: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Mouzinho de Albuquerque, “herói de África”, o escultor António Soares de Reis, que dá nome ao Museu de Belas Artes de Porto e talvez, por cima de todos eles, o mais grande amigo e mentor de Unamuno na arte de ser português, o doutor Manuel Laranjeira, aquele que lhe escrevia no ano 1908: En Portugal llegóse a este principio de filosofía desesperada; el suicidio es un recurso noble y una especie de redención moral. En este malhadado país, todo lo que es noble se suicida; todo lo que es canalla triunfa”. A diagnose, traduzida para o espanhol polo próprio Unamuno faria parte para sempre da sua interpretação de Portugal. Pela nossa parte, amigos como somos das letras portuguesas, não podemos deixar de acrescentar mais um suicídio: o do poeta Mário de Sá Carneiro, amigo de Pessoa, num hotel qualquer de Paris aos seus vinte e seis anos. O suicídio, um fado do país.
A última leitura do clube santengrácia foi “E se eu gostasse muito de morrer?” do jornalista escritor alentejano Rui Cardoso Martins. O título provém de “Crime e Castigo” de Dostoievski que põe a pergunta em boca do assassino Raskolnilkov. Rui Cardoso concorda com a pergunta mas não acha resposta clara: “E se eu gostasses muito de morrer?…que bela pergunta à que ninguém sabe responder!”
Cardoso nasceu em 1967 na vila alentejana de Portalegre, Distrito fronteiro com Cáceres e Badajoz. O Distrito limita a norte e nordeste com as duas vilas mais formosas de Portugal, se nos desculpar Óbidos: Castelo de Vide e Marvão. Puro Alentejo: casas caiadas, azinheiras e silêncio.
“E se eu gostasse” é uma colagem de contos cruéis relatados com crueldade e temperados cá e lá por reflexões melancólicas impregnadas de ironia sobre a vocação irrefreável pela morte voluntária dos nativos. Reflexões marginais, fogos-fátuos fugidios, poderíamos dizer a propósito, que iluminam a desolação cruel das histórias que presidem o fúnebre romance. Duas são as minhas favoritas. A primeira descreve Portugal como um país impossível partido em duas metades opostas por um rio que separa uma terra de suicidas cá no sul e outra que não gosta de procedimentos tão expeditos lá no norte. A diferença norte/sul é muito importante para o país a começar pelos gostos alimentários. Descreve Cardoso a receita perfeita no sul: Sopa de Alentejano Feliz. Não fatam os coentros, o sal grosso, o azeite, o pão e ovo escalfado de toda açorda alentejana que se prezar, a diferência está na especiaria proposta para dar-lhe o toque definitivo: xanax, benurom, prozac e valium, tudo bem esmagado. A receita tem a vantagem adicional de que permite poupar em cloreto de sódio que faz mal à tensão arterial, segundo opinião autorizada de Cardoso que devemos agradecer. Contrasta a criatividade desta sopa à moda alentejana com a receita tão simples da Sopa de Cavalo Cansado preferida no norte. Galiza incluída, acrescentamos nós. Cá na Gallaécia os gostos são menos refinados e sempre foram preferidas comidas menos condimentadas. Um traço histórico, talvez.
A segunda reflexão que guarda a memória é mais subtil porque alude a questões de estética. Disserta o autor sobre janelas manuelinas: “Quanto às cordas e cordames enrolados da janela, tão característicos da manuelice, admiro que estejam mais próximas desta realidade. Já dão ares de cordas dos desesperados que se enforcam na tábua de algum desvão, como dizia o poeta”. Adoramos a denominação de manuelice para qualificar essas obras-primas da arte portuguesa. Quanto à realidade aludida no comentário de Rui Cardoso, é uma referência que faz o autor para explicar o facto misterioso de as janelas manuelinas, de formato tão marítimo, ficarem em vilas interiores de Portugal. A única justificação em opinião de Cardoso é a de não ser infrequente terem encontrado na barragem mais próxima da vila “o coração arrebentado dum marinheiro … nas águas entre os chaparros, vomitando a feijoada e o garrafão de tinto”. A barragem pelo mar, a corda do enforcado pela cordame marinheira, esta é a entoação amarga e irónica de Rui Cardoso que nos prende e que talvez só pretenda ocultar a ausência de razões para viver que Unamuno diagnosticara.
O debate sobre o livro entre os assistentes à última reunião do santengrácia distou de alcançar unanimidade. Duas foram as posições em lida, concordantes ambas as duas no carácter marcante do livro -não é livro a esquecer facilmente- mas discrepantes no gosto do autor pelo esquartejamento e o morticínio que impregna os mais dos relatos. Houve reservas e eu adiro. Pessoalmente acho mais estimulante os contos de inquietação capazes de removerem o medo primordial que guardamos desde a infância que não a crueldade massiva e gratuita que impregna filmes do tipo de “Seven” ou de “A matança de Texas”. Se me desculpa o senhor Cardoso gostaria roubar-lhe o lema que encabeça o seu romance: “Não gosto de pessoas que se matam. Acho uma falta de educação. Tereza” Comparto a opinião quando penso em filmes que gostam de salpicar de sangue as primeiras fileiras da sala de cinema. Melhor a morte imaginada depois da ingestão de uma dose de Sopa de Alentejano Feliz do que um assassinato a machada. A literatura gore não é para mim, prefiro o pressentimento da sombra que se insinua no umbral. O erotismo do medo.
A árvore dos cabritos, o triple suicídio de Maria Ana, as 23 facadas na infeliz Catarina, a eficiência da máquina de cortar cortiça da fábrica de rolha são episódios que não se esquecem facilmente mas, quanto melhor a saudosa lembrança adolescente dos liceus suecos do Alentejo a 47 graus centígrados no verão que não dão para falar de Kant ou de Pitágoras ou a cena aquela do neto de 11 anos que maçava no avozinho camponês com o seu gameboy japonês até empurrá-lo -pára com isso! pára com isso!- ao veneno de escaravelho de batata, 605 forte.
Um coveiro inicia o livro e um coveiro o fecha. Dois cemitérios que talvez sejam um só, aquele que faz exclamar o autor “Em que fado parámos, onde fica Portugal?”
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