Pega no livro

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A Torre da Barbela, de Ruben A.

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Digam-me Terra Venturosa, que eu logo rompo a evocar o Vale do Lima.

Ainda há pouco tempo andei por lá com os sete anos do meu sobrinho João: num domingo de setembro comeu Papas de Sarrabulho no restaurante Lusitano de Gemieira, cantou Fai um Sol de Caralho num carro a caminho de Paredes de Coura, e atravessou o Lima a nado para o nosso grande espanto. Todo um rito de passagem para um miúdo do século XXI.

O hit dos Resentidos bem poderia servir de banda sonora a este livro de Ruben A. de que vos queria falar: A Torre da Barbela (1964). Com o bucolismo onírico e a vanguarda de mãos dadas, o enigmático autor lisboeta guia-nos polas voltas e reviravoltas de uma estrada regional pós-moderna, entre Viana do Castelo e Ponte de Lima.

A Torre de Barbela junta personagens de tempos diversos num mesmo espaço: o Vale do Lima, sobranceado a norte pela serra de Arga.

Dona Urraca, Dom Raymundo, Dom Mendo, Dona Mafalda e outros nomes de ressonâncias históricas, partilham os espaços da Torre e a Casa da Beringela com o Cavaleiro, a Bruxa de Semedo, Niku, Madeleine, ou o castrati Borbola.

Misturando o teor vanguardista com o fraquinho de muitos autores portugueses pelo ruminar em volta da identidade pátria, Ruben A. constrói um artefato bastante sofisticado para medir a densidade do Nevoeiro luso.

Deparamo-nos no livro com personagens que flutuam ao jeito de mortos viventes, incapazes de agir e de afirmarem-se – lembrando muito de perto a falta de inscrição de que fala José Gil em Portugal, o Medo de Existir. O Grande Nevoeiro em que teria sumido o país concretiza bem esse estado de espírito.

O mundo sonâmbulo da Torre continuava os enredos vividos no real quotidiano. Aquela navegação humana pisava os caminhos de sofrimento e amor que havia trilhado antes da entrada mortuária nos sarcófagos e pedras tumulares. Era difícil analisar as paixões, o desânimo e a incompreensão que cada um carregava às costas. Noite a noite passava-se um aguçar declarado das diferenças e das semelhanças. Arrancavam-se pormenores não percebidos anteriormente e os gostos voltaram a boiar à superfície naquele estágio indefinível de aguardamento responsável. E, congestionados ou não, todos eles se mexiam a querer cumprir uma missão que em vida lhes falhara. Espécie de objetos que se deixam transportar de um lado para o outro, e que de repente tomam consciência de si mesmos.
(Página 65)

Querendo fugir a esse círculo, deparamo-nos com o amor do Cavaleiro pela francesa Madeleine. O ensaísta Eduardo Lourenço veria nesta personagem feminina a imagem que muitos portugueses têm da França e do estrangeiro, em geral.  Eis, por sua parte, a visão que a Madeleine tem dos Barbelas:

Ela atirava-se sem restrições para tudo que, ao seu alcance, motivava prazer e alegria, precisamente uma qualidade de alegria que deixava os primos perplexos. — Sim, porque esses Barbelas, por mais que lutassem e fizessem, mantinham um espírito tacanho, e pior, tímido. Através da história sempre a intriga e o mau gosto a minarem tendências benéficas, aptas a um mundo melhor. Muitos dos Barbelas —  a massa informe que não se via a passear no jardim dos Buxos ou que não se independentizara em nomes presos ao ouvido — essa massa vagueava de um lado para outro à mercê de encontrões dados pelos mais espertos. Quantas lutas não travara o Cavaleiro para se manter vivo naquele mar morto de incultura? Quantas vezes não o quiseram exterminar por revelar ideias diferentes das dos outros, dos que se julgavam com o privilégio das ideias? (Página 137)

Na Torre da Barbela encontramos ainda a vertente cómica, a construção narrativa insólita, ou o debruçar-se lentamente sobre o espaço geográfico.

O livro é dos que se devem levar no peto no verão, acompanhando as obrigadas visitas às romarias de Nossa Senhora da Agonia, São João de Arga, ou as míticas Feiras Novas de Ponte de Lima, com a serra d’Arga sempre à espreita:

A norte, ao alto da subida, ficava, enxuta, a serra de Arga com os seus picos arredondados e o brilho indolente de um basalto parecido com o granito das pedreiras marinhas. Era um vulcão pelintra que se adormecera contente da medida normal dos seus vizinhos e que deitando lá para baixo os olhares se entusiasmava de tanta coisa. E para Madeleine não era só o casario e o fumo dorminhoco a sair dos telhados mais escurecidos, também a sensação do ar enfeitiçado das curvas do rio que lambia, prazenteiro, as pernas dos salgueiros e as unhas sujas dos choupos. A cada volta mais arejada de Vilancete, ela mirava de um e outro canto, e de esguelha, segurando-se por um braço ao cavaleiro, comia a distância num pasmar boquiaberto. A paisagem via-se como única sobre a terra — símbolo de morte a extasiar e a parir roxos transparentes no amor entre as pessoas. Havia na intenção do criador qualquer coisa de mágico e penetrante de que a razão normal dificilmente se apercebia. As pessoas sentiam-se atraídas como chamadas para o desempenho de uma nova missão. (Página 122)

RioLima03http://www.cm-pontedelima.pt/ (Fonte da imagem)

Ao puxão sensual dos fartos milhos e as videiras de verde verdinho, ninguém se poderá furtar. A Torre da Barbela é a pimentinha que falta que falta para fazer cócegas nos pés ao mais encantado de todos os vales.

Recomenda-se que A Torre da Barbela compartilhe os bolsos da mochila com as Novelas do Minho do Camilo Castelo-Branco, A Casa Grande de Romarigães do Aquilino Ribeiro, e as Flores do Lima de Diogo Bernardes:

Águas do claro Lima, que corria
                        Pera mim, noutro tempo, claro e puro,
                        Que correr vejo agora turvo, escuro,
                        Quem afogou em vós minh’alegria?
                  
                        Cuidei que com vos ver descansaria
                        Do mal do cativeiro, triste e duro;
                        Mas mais sem gosto aqui, menos seguro
                        Me vejo, do que me vi em Berberia.
                   
                        Mudança vejo aqui em arvoredos:
                        Creceram muitos, muitos acabaram,
                        Fez seu ofício em tudo a natureza;

                       Duas cousas, porém, não se mudaram:
                        Lugar e duro ser destes penedos,
                        De vossos naturais teima a dureza.

Como o livro é dos que põem o mundo a a rolar ao contrário, sirva para encerrar estas palavras, a insólita dedicatória inicial:

À Maria do Patrocínio e ao José Manuel Gonçalo Xavier do Valle Peixoto Coelho de Castro Vilas-Boas de Sá Faria e Vasconcellos, fidalgos de vários costados, Senhores da Foz do Neiva e da Honra de Sapardos, Raia Seca e Mentrestido, com feudo de leiras de semeadura na veiga da torre da Barbela — que um dia, na passagem das terras de Paredes de Coura para Arcos de Valdevez, me contaram a história virtuosa de duas irmãs, da Casa de Sestêlo, que, cansadas de uma longa vida de oração e prática de virtudes, resolveram pecar.

Pouco antes da morte, confessaram ao abade da Moutosa que não não queriam entrar no Purgatório de almas lavadas.

Se assim o fizessem, seria grave ofensa às almas que lá estavam penando. Pecar, para elas, era o último acto de virtude que podiam exercer, pois as irmãs de Sestêlo não se permitiam entrar puras onde outros sofriam por muito pecado.

Só assim continuava no outro mundo o seu exemplo de modéstia e humildade.

Joseph Ghanime escreveu esta léria.