Pega no livro

Clubes de leitura da Galiza com algum livro em português


Enredados em Bretonha.

(Envio a crónica que o nosso camarada do clube «santengracia» João Facal, fez da romagem em Bretonha, para solaz de todos os habitantes do planeta pega-no-livro)


Quinze de Setembro foi o dia marcado para inspeccionar o estado da rede de leituras em Bretonha. À rede e a Bretonha dedicamos-lhe o dia inteiro desde as dez da manhã. O lugar, o vale que o rodeia, infunde um indefinido ar de magia que em seguida tivemos ocasião de experimentar os assistentes ao encontro, nada mais pisar a cidade de Maeloc. Às dez, hora de chegada, todos pudemos escutar claro e inconfundível o canto de saudação de uma pega livre aos de Pega no Livro. Foi a mesma, com certeza, que porta os óculos no nosso logótipo e camisola. Tal qual como ouvem, acreditem ou não, assim foi.

A ânima festiva e folgaçã de dom Álvaro Cunqueiro devia andar próxima, sentimo-la de perto a procurar a galinha dos pitos de oiro na Fonte do Tesouro do Couto da Aurugeira onde os celtistas galegos celebram a festa anual do Lugnasad. O guia para a fonte misteriosa e as insólitas árvores enlaçadas, lá perto, foi António Iglesias, o nosso oficiante na Aurugeira. Cunqueiro acompanhou-nos também quando assistimos atentos ao relato do que lhe aconteceu àquele vizinho de Bretonha nom excessivamente destemido – que todos conhecestes bem – quando voltava a Bretonha de noite montado na sua besta, mesmo ao passar pelo cemitério. O veterano narrador, Siro Chao, sabia muito bem o que contava e contou muito bem o que sabia. O passeio deu ainda para visitar um moinho velho onde as histórias de farinhas e anoitecidas protagonizadas por mocidades necessitadas de moendas demoradas. O relator era agora Secundino Bouça, moinheiro de oitenta anos, que nos instruiu nos mistérios da profissão e nas virtudes dos moinhos. Estávamos na Terra de Miranda tão amada pelo Sochantre de Mondonhedo e as histórias que lá escutávamos e as fontes dos tesoiros que inspeccionamos eram as mesmas que impregnavam a botica fantástica cheia de remédios, mencinheiros e feirantes, onde dom Álvaro aprendeu as letras. É bom saber que lá segue o espírito do Sochantre, passeando sem pressas como sempre sempre fez, imune ao tempo como os tesoiros novos e velhos que um não acaba nunca de encontrar.

Houve mais que fantasia. Éramos perto de quarenta leitores e amigos do livro galego em qualquer ortografia – afinal que mais dá escrever Maeloc ou Maylok? – gente de letras toda, enfim. No acampamento base formavam os do santengracia, do Anna Politkovskaya, e do Lendolendas de Compostela, os do clube Tuga-Lugo-Lendo de Lugo e os do Paco Martim de Bretonha, que oficiavam de anfitriões baixo o experimentado comando de Belém Chao, de família de narradores orais reconhecidos. Também gente dos clubes emergentes: Cultura do País, Mádia Leva e algum mais em projecto. É claro que isso da leitura partilhada está a nascer e que a rede de baixura vai terminar em arrasto. A leitura, como o bom cinema ou as viagens, demanda tertúlia e opinião como melhor forma de apreçar e completar a compreensão. Cada leitor é um intérprete e a totalidade é o próprio livro. Eu vejo-o assim.

Zeca Afonso aconselhava: traz outro amigo também. O Joseph Ghanime, que não deixa nada ao acaso, seguiu tão sábio conselho e trouxe vários de qualidade, a começar pelo escritor portuense Jaime Froufe Andrade, amigo na lembrança do grande Zé. Trouxe o Jaime consigo lembranças de Moçambique: a história de um rádio confiscado a um guerrilheiro da Frelimo numa noite de rangers e medo. Era o Moçambique aquele que tanto fez sofrer às meninas portuguesas. Não lembram a canção “Menina dos olhos tristes”? Bom talvez não, nós os nascidos quando as descolonizações lembramos bem.

Houve também artesanato de luxo, artesanato de livros e encadernações apresentado polo artista livreiro Antom Mourim, de Castro Verde, com a sua mãe, Lídia. Mourim frequenta a EOI de Lugo. Que aprenderá é seguro, na encadernação já é doutor. Houve ainda uma poeta, Laura Branco, e o seu editor, Pepe Árias de Corsárias. O livro ainda não o li, ainda mas a edição é para ver, uma surpresa, um pequeno Calixtino ventureiro.

Assistimos também à demonstração por via lógica da utilidade do galego –uma evidência que muitos suspeitávamos – oficiado por J.R. Pichel, co-autor com V. Fagim de um livro onde vem a demonstração inteira. Quem não seja convicto pelas razões expostas é caso perdido, e o melhor é deixá-lo à sua bola como agora se diz. A quem não quer aprender já lhe podes pôr mais preceptores que ao Príncipe de Gales, que é causa perdida.

Já no serão, de remate, tivemos lição interactiva com António Reigosa, mestre de zoologia mítica e saberes ocultos, nascido, como é obrigado, naquela terra fértil de Miranda onde mora ainda gente do trasmundo. O doutor Reigosa tentou esclarecer a procedência e costumes de tão secreta tropa. E quem sabe, o próprio Cunqueiro atreveu-se a peguntar a Rego de Bouças de onde é que vinham os anãos e o ele respondeu-lhe: de longe. Pois é.

Que aproveitamos bem todo o tempo e circunstância é bem certo. Tomemos por exemplo, e nunca melhor dito, o almoço do meio-dia. Por quinze euros demos conta de uma entradas de panada com massa de pão, não dessas ruins de massa folhada só aptas para peregrino esfomeado; seguiu-se uma paelha que, bom não era propriamente valenciana mas honesta e caseira; e depois ainda carne de posta com batatas mais que competente, muito luguesa. Sobremesa de tartes geladas, vinhos branco e tinto do Ribeiro. Aguardente e whisky para acompanhar o café. Algum companheiro do santengrácia apresou-se a preparar o seu café com cheirinho que nunca perdoa quando viaja a território amigo. O preço da refeição incluía merenda de tarde para quem quiser. Nós recusamos, mas lá iam multidões quando partimos para Compostela. Levamos algum livro e também camisolas com a pega totémica, graças à Sabela que por lá andava com a loja aberta. Espaço imprescindível nos encontros de gente letrada.

Não perdemos o tempo em Bretonha, por mais que pessoalmente senti não poder contemplar o vale em que assenta desde algum dos outeiros que rodeiam o lugar para tentar de abranger inteira a venturosa Terra de Miranda que o mestre Merlim enchera de vidas. Na vila pouco fica do feitiço, apenas vestígios na torre da igreja junto com o culto assíduo dos britonienses à memória persistente de tesoiros soterrados e histórias inventadas ou verdadeiras. Contudo, não deixem de fazer visita à Praça onde Fernando Villapol, escultor desde picarinho – o termo para criancinha é de por aí – que pus o príncipe-bispo Maylok em vera efígie subido a um carvalho e rodeado de salamandras – ou píntegas como eu digo – para nomear a imortalidade. Gostei, São Francisco com o seu lobo em Compostela, São Maeloc com as suas píntegas em Bretonha.

O lance de redes em Bretonha esteve à altura da gente que a compõe, mas o êxito não foi por acaso. As mãos de Belém e as de Joseph estavam atrás e faziam-se sentir. Mãos invisíveis, claro, como as da gente que está sempre quando é preciso. Com eles ficamos em dívida. Que a pega lho pague, ou lhe-lo pague como ali dizem.

João Lopes Facal, clube santengrácia


15 de setembro – todos em Bretonha com a Pega

Imagem

No dia 15 de setembro decorrerá em Bretonha (Pastoriça) a primeira edição do encontro Pega no Livro. A jornada inclui um roteiro guiado pela localidade chairega, um aberto de sete clubes de leitura e leitores, lançamentos de livros e um colóquio sobre seres míticos.

José Ramom Pichel apresentará O galego é uma oportunidade. Jaime Froufe Andrade, do Porto, lembrará a guerra colonial com Não sabes como vais morrer. De Foz chegará Laura Branco com a Doença dum Espelho, da Corsárias. Antón Mourín e Lídia Álvarez, de Castro Verde, mostrarão livros artesãos.

Para fiar estórias de seres míticos, contaremos com Antonio Reigosa, Calros Solla, e todos os clubistas e assistentes. A Armórica galega fornecerá o cenário perfeito para este encontro com o clube da galinha dos pitos de ouro.

O evento é totalmente aberto. De Lugo partirá um autocarro às 8h45 (Escola Oficial de Idiomas de Lugo), com regresso às 21h (7€, inscrições com email para deporlugo[gmail]gmail.com). Haverá um jantar opcional (informações: clublecturapacomartin@gmail.com, preço aprox.15€).

A organização anima os assistentes a levar ao encontro algum livro da sua preferência, em jeito de recomendação para partilhar com outros(as) peguistas.