A memória nostálgica dos lugares encantatórios de Alma, a vila de infância, dessa infância, donde vêm as imagens e as emoções que norteiam a vida. Toda a vida: não há flecha que não tenha o arco da infância.
No sábado 14 de março reunimo-nos no clube de leitura Lugo-Tuga-Lendo para ceifar, debulhar, … o livro Alma, de Manuel Alegre. A leitura desta obra incita à partilha.
Começamos impulsivamente pelos “gostei”, “não gostei”, que se foram matizando, colorindo coa conversa e o palavreado. As frases iniciais: romance da infância, meninice, lembranças, alvitres, recordações …dum tempo e num espaço. O tempo cronológico coincide com o do autor (nascido em 1936) e o lugar é Alma, uma aldeia fictícia, algures no distrito de Aveiro, no sopé da serra do Caramulo. Vila encantada onde convive tradição e subversão, melancolia e audácia, crendices, ideologia e futebol.
As descobertas clássicas das relações familiares, das personagens da aldeia, das amizades, do sexo, dos porquês…Pela voz do narrador autodiegético, Duarte de Faria, adentramo-nos no seu passado que recupera, à vez ,o passado colectivo dando um certo encanto ao livro. O fantasma de Salazar atormentava as consciências e as vidas; havia coisas que uma criança tinha muitas dificuldades em compreender: as prisões arbitrárias e as perseguições da PIDE eram inexplicáveis para o jovem Duarte, assim como a miséria de alguns. Tudo misturado com o futebol regional, cheio de alegria e pancadaria.
Duarte pertencia a uma família mais ou menos abastada, governada pela avó, à maneira matriarcal, que também identificamos na nossa Galiza. Foi a figura que mais deu para falarmos.
Na escola, a palmatória estava sempre pronta: o professor era uma autoridade.
- Àgueda, a vila beiroa em que se inspirou esta história.
- Fonte da imagem:http://pixabay.com/pt/sol-%C3%A1gueda-rua-681957/
Ao longo do livro vamo-nos deliciando com descrições da vida de uma criança na aldeia, os pássaros, a camaradagem entre miúdos traquinas, travessos. As memórias de infância. Os cheiros, as vozes, as emoções de um tempo em que o tempo não tem fim. A nostalgia dos lugares mágicos da infância. As traquinices com os amigos, as primeiras descobertas da vida e do corpo, o ambiente familiar, a vizinhança, os primeiros anos de escola, as brincadeiras de criança, o berlinde, o botão, o futebol, as tardes no rio, as criadas atrevidas, a escola, os primeiros namoros, as conversas conspirativas dos adultos, são algumas memórias que o autor partilha connosco.
Numa estrutura de encadeamento narrativo, entrecruzam-se duas histórias: a individual, de Duarte, com os fascínios, sonhos e receios infantis, pejada de rememorações nostálgicas dos jogos e da camaradagem de outrora, e a de Alma, uma comunidade peculiar, dividida entre o fervor republicano, o temor a Salazar e a nostalgia monárquica, esta última, encarnada por uma minoria, à qual pertence Lourenço de Faria (pai de Duarte) e outros ‘fidalgos num tempo em que já não havia lugar para ordens de cavalaria’.
Inúmeras são as personagens que permanecerão, finda a leitura: o Zeca Sucateiro, preso pela PIDE, ele que, confessa a Abília (sua mulher), apenas lê A Bola; o Ti Florêncio, dono do comércio local, espaço onde se reúnem os republicanos para discutir a evolução da guerra, cujos ganhos e perdas são representados, com bandeirinhas inglesas, num mapa da Europa afixado na parede do comércio para o efeito…
Inevitavelmente despedimo-nos desse lugar da infância, sentindo-o como mais do que um lugar, uma sensação de irremediável saudade daquilo que de nós deixámos nas pessoas e nos espaços que ficaram para trás, tal como Duarte sente ao despedir-se da sua vila, quando parte, naquele final de Setembro, de camioneta para Lisboa: “Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia mãe”.
Embora houvesse pessoas que gostaram muito da leitura, a pontuação afinal atribuída foi um 6.
O nosso muito obrigado à Carme por esta resenha
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