Pega no livro

Clubes de leitura da Galiza com algum livro em português


Nasci com passaporte de turista (Alves Redol)

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Trata-se de 13 textos reunidos num volume que leva por título o mesmo que um dos contos , datado de 1940.

Eis o comentário de algumas destas histórias, breves, originais, e sempre cum fundo de desacougo e desespero.

A MARCA

Lugares e pessoas: o Tejo, a pesca no rio, a lota, os peixes, as pequenas embarcações, os pescadores , as mulheres e as crianças.

Vocabulário: Léxico muito rico, muitas expressões para nomear trabalhos, barcos, peixes, dialectalismos ribatejanos, tecnicismos próprios do ofício que fazem tudo não tão doado de compreender numa primeira lectura.

Dialectalismos: Seu Santos, Num falha, Num ir ao mar, Eh , pá, Ti Rendeiro, Com’a pescada ao sol, Medo de sujar, num senhor, Num há ninuém, Estou c’uma alma p’ra animar a gente, É uma teca d’oiro, Num te mexas Zé que me desgraças, Já num vem cédo…

Léxico da pesca e dos barcos: remar á jouja, as bateiras, os dongos, saltando a prumo, abrem as barbatanas em leque, as guelras, os toletes, as sabogas, o arrais, o saveiro , o barrete, o arrais cia, o saveiro balouça, singrar ao impulso de quatro remadas, a lota, canastras á cabeça, o mouchão, águas mansas, remar de tesoura, o Tejo barrento, o barracao do estaleiro, o bojo de uma fragata, calhaus e dejectos, as velas dos moinhos, a varinagem, encalham as bateiras, proas viradas, singram saveiros na recolha dos sabugais, o canto dos toletes, lançar redes, submersas as coxas no lodaçal, fustigados pelos chicotes, auga das sabogas, pescar á chincha, o arrais, ao leme, desbarrta-se, das tecas o peixe vai para os oleados em canastras.

Prosa poética:

  • Já há estrelas que dormitam

  • Correm nuvens largas que envolvem o luar de roupagens tristes

  • Só a estrela da aurora rutila

  • Passa um suão frio que vem do Tejo acima e tanga as árbores

  • E deixa nos corpos dos homens vincos de verdasca

  • Mas lá enriba a estrela da aurora cicia-lhes que o dia vem

  • Estrelas sem poesia. Estrelas do Tejo

  • E um debruça-se nas águas a deitar sonhos e a colher desenganos

  • É um lamento que parece expirar e nunca finda

  • Agitam-se os corpos palhetados de prata

  • Abrem as barbatanas em leque

  • E das guelras escorre um frio de sangue que macula sos outros

  • Choram por eles os toletes

  • O Tejo era um mar de peixe

  • O barco afasta-se do cabeceiro como cavalo aos galoes

  • Vão despindo trevas, receosos, os montes do Norte

  • Definem-se cabeleiras de pinheiro e neves de casario

  • As sabogas vao lutando a estrebuchar de angústia

  • O sonho de liberdade que acarinharam e que a realidade dolorosa destruiu

  • Um aragem de lâmina afiada corre do suão

  • Os vidros fulgem nun brilho sinistro

  • Uma golfada de sol doirou o zinco do barracão

  • Nos esgares de fadiga que o carao afogueado projecta, divisam-se arrebois de alegria

  • Á volta dos olhos um rodopio de cores em marcha alucinante tolda-lhe a vista enfraquecida

  • O Tejo era seu livro de memórias, escrito dia a dia , com labutas e suores

  • O verde dos ciprestes devassa tudo

  • E a plagência do seu rumorejar é um lamento

  • Là vão, a cirandar, ancas enlaçadaspelo braço da cinta

  • Pela praia fora, como bustos de mulheres, as proas dos saveiros

É um documento de um tempo e de um lugar: a pesca no Tejo , com as roupas que vestem os homens e as mulheres pobres que têm este trabalho. As crianças, com as mulheres, quando a natalidade apresentava o problema contrário a hoxe: miúdos de mais para poderem ser mantidos e vestidos.

É um relato que retrata um cadro duma sociedade mísera que vive da pesca no Ribatejo na primeira metade do século XX.

AQUELA HISTORIA

Depois de 12 anos trabalhando, um homem fica na rua, sem trabalho no escritório ao que dedicara o seu tempo.

Casado e com três filhos : ” Aínda se não estivesse casado!” A sua situaçao familiar nao faz mais que fazer mais difícil a situaçao.

Quando a Sociedade Exportadora precisou dele, là trabalhou. Mas quando rebentou , o patrão , o Senhor Reis esqueceu-se de tudo o que prometera.

A CORNETA DE BARRO

Miséria. Busca de trabalho. Apenas para a jorna. Melhor trabalhar assim do que ” ouvir as companheiras e os fedelhos”. Trabalho duro: “Fadigas e frios a tomar-lhes o corpo”. Quando caíam de fadiga, outros achavam jorna: “Abalavam sem rumo , em busca de pão”. E iam “estrada fora, como mendigos, a bater aos portoes das quintas”.

Desejo de “dar-lhe um ofício aos filhos”. “Cavar nao era empreitada de gente”.

A corneta de barro era um brinquedo que “dava inveja a toda a malta”, dizia o filho pequeno. Na feira ia comprá-la.

Passou a noite à espera de “vestir o fato e pôr o boné… meias até acima e botas com sebo” para ir á feira.

Queria a sua corneta ” e depois era tocar”. Ele sempre impaciente , pela mao do pai: ” Se dessem de comprar cornetas, nao teria a sua”. ” Se tivesse forças, puxava-o (ao pai) para andar mais depressa”

“Ó pai, vamos embora!”

Finalmente compráram a corneta: “Tinha ali a melhor feira. Tudo na sua corneta”. Levava a feira consigo. Era o primeiro brinquedo seu. Bem empregadas canseiras no rabisco. Já estava cansado de ser boi nas brincadeiras. Agora a coisa mudara.

Mas… quando estava chegando a casa, caiu e a corneta rompeu-se : ” Era minha!”

LUA DE PÉ…

É a continuação do 1º conto e segue a relatar o mundo da pesca no Tejo. Penúria. Ja não há nada que pescar. Fome das crianças. A mulher nao tem pesca que vender. Aquela noite, se pescar, pagar-ia as débedas e a mulher poderia vender no mercado.

RAFEIROS

Os dois rafeiros são o cão de garda e o Feliciano da Emposta: os dois a trabalhar para o patrão. É por isso que o autor repite uma vez e mais outra , ao largo do conto , que ele , o Feliciano , era o melhor cao daquele senhor que tinha dois rafeiros. E nao tinha quem o quisesse.

Lugar: o Ribatejo

Dialectalismos próprios da zona.

ESPÓLIO

Dor , desamparo , miséria e soidade de um homem depois de morrer-lhe a mulher. Com a doença dela , gastara tudo o que tinha. Apenas tem agora uma casita a cair aos bocados e uma égua tão velha como ele: A Judia.

Vai a feira, e pelo caminho, a rapaziada faz troça do animal por ser velhinha:

– “Eh seu homem, puxe là isso para a direita!”

– “Chega là isso p’rá banda”

Um ciclista gritou-lhe ” que levasse o animal ao colo”

Zé Mazarico sentia-se satisfeito por ser capaz de dominar alguma coisa no mundo. Por isso ia “devagar se alcança jornada”.

A mulher tinha-lhe pedido que nunca se defizera de Judia.

-“Vais vender isso?”

– “Nao rapaz!… vou ver se compro a tua mae que a esta hora já está á espera do feirante”

Momentos houve que pensara em acabar com a vida.

Nao podia vender a Judia. Ela mesma pedia afagos ele acarinhou-lhe as crinas e as ancas.

Perdera tudo numa noite de bebedela. Nada tinha para dar-lhe de comer.

Nada mais tinha para dar que amarguras.

“Que lhe ia dar? … Afagos?… O corpo nao os conhece, quando a barriga os não sente”.

Ficara a manta rota, a casa aberta ás aranhas e aos gatos e a égua.

Desespero. Por que não teria malvendido a Judia?

Sente tentaçoes de gadanha-la para nao sofrer mais. Os gatos a repetir o mesmo escárnio:

“Seu Zéée… Seu Zéée…” .Toda a noite.

(Clube Lendo lendas)


Olalla e Cris coñecen o club de lectura Paco Martín.

O pasado sábado 18 de maio o club de lectura Paco Martín tivemos unha xuntanza para conversar e comentar o libro que estabamos a ler: “Homes de tras da Corda” de Carlos G. Reigosa, co cal xa rematamos.

ImagemPero este encontro non foi un máis, senón que foi unha tertulia especial xa que recibimos a grata visita de Olalla e Cris.

Estas dúas rapazas, que nos eran descoñecidas ata ese momento, presentáronnos un proxecto moi interesante que están a desenvolver un grupiño de catro ou cinco persoas e que consiste básicamente en levar ás aldeas pequenas aquelas actividades socioculturais das que só se pode disfrutar e participar nas vilas meirandes ou nas cidades. Sen necesidade de que sexan sempre o/as aldeáns quen teñan que desprazarse para poder acudir a estes eventos, e deixar aos sitios pequenos sen ningunha oferta deste tipo.

Olalla e Cris contáronnos que unha das propostas na que están a pensar é a de criar clubes de lectura e foi por iso polo que decidiron vir a Bretoña, para observar como podería funcionar esa idea noutras aldeas parecidas a nosa.

Á reunión dese sábado non foi precisamente cando a maioría do/as asiduo/as das outras voltas fixeron presenza; tamén é sabido que nos reloxios de Bretoña, as agullas van a outro compás, pero pouco a pouco foi chegando a xente e puidemos formar dous equipos, “As de Acó” e “As do Pedredo” para xogar ao redor dos contos dos homes de tras das Corda. Por certo, gañaron “As do Pedredo” que recibirán o agasallo sorpresa na seguinte xuntaza.

Mentres xogamos a timidez inicial foise alonxando, e as anfitrionas fóronlles contando ás nosas convidadas esas historias que saen a raíz do libro que se le, e que sempre sempre superan calquera dos relatos escritos. Ao mesmo tempo, Olalla e Cris, Cris e Olalla, dábannos as súas opinións e tamén nos ian relatando como pensan levar adiante o brilante plan, comezando en aldeas de Becerreá, onde teñen os seus traballos e onde lles gustaría deixar unha semente antes de ter que marchar dese lugar.

 Pasamos unha tarde moi agradable. Esperamos que este encontro servise para darlles un pulo e animar a estas mulleres a que sigan para adiante con ese gran proxecto.

Tamén queremos agradecerlles o seu interese por nós, e propoñemos novos encontros cos clubes que seguro van a nacer dese gran.

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Às voltas com um sonho (Víria Moeta)

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(O clube “Lendo lendas” de Compostela, publica mediante sistema de auto-edição, a obra primeira de uma das suas partícipes)

Às voltas com um sonho é uma coletânea de oito relatos independentes que, por corresponder a momentos temporais e emocionais diferentes, recriam cenários vários e mesmo chegam a ser diversas as técnicas narrativas utilizadas em cada. Em comum têm a vocação duma escrita singela, agradável e comovedora, que possa ligar facilmente com qualquer pessoa que os ler, embora não seja perita na leitura.

Ao longo das narrações constroem-se paisagens humanas pelas quais transcorrem, espontâneas e naturais, experiências da infância, da adolescência e da madureza. Pô-las por escrito foi, para a autora, como fazer pagamento duma dívida com a vida, como a entrega inexorável daquele óbolo mitológico, ao ultrapassarmos a inocência.

São oitos relatos livres de preconceitos, nos que se mistura o fantástico com o real e o vivido com o imaginado. Os parágrafos avançam, frase a frase, com o ritmo flutuante dessa pulsão íntima e intensa que as emoções mais primárias têm por si.

Quando o poeta achou ter atingido o ponto culminante da sabedoria, depois duma longínqua espera, declamou descoberto que “Godot era apenas aquela borboleta a brincar com o vento”. É, se calhar, ao abeiro dessas pequeninas coisas como conseguimos manter-nos erguidos no latejo tumultuoso da existência:

Começa, assim, com um relato atual no qual uma adolescente, estudante do quarto curso da ESO, soçobra nos quinteiros da música, do ambientalismo, da língua… do amor.

A seguir, um passeio escrito pelas misérias da vida, um conflito entre a classe média e o lúmpen, um retrato da nossa sociedade no que nos contemplamos como num espelho.

E aqui situam-se duas histórias da infância: a reação diante dos fatos transcendentes da vida e da morte, com o transfundo da emigração, em um mundo rural extinto com um pouco de bucólico prestado pela pátina do tempo; e um retrato em sépia da escola nos anos obscuros, salpicado de gotas de saudade, que vai ficando para trás no campo pessoal e íntimo, em um momento de mudanças sociais enxergados ao longe. Dois feitos que não deveriam acontecer em idade tão recente, mas a vida não entende de idades.

Depois vem um conto de Primavera, uma emigração arriscada de feliz sucesso na qual um rapaz galego transformasse em jornalista e poeta no Brasil, pais onde constrói a própria identidade, que conclui com um convulso retorno.

Mais um conflito social. Nesta ocasião um rapaz de classe baixa, em plena adolescência, revolta-se contra a autoridade: um sem sentido humano no meio dum mundo materialista, a contradição entre o ter e o ser.

Por últimos dois relatos, claramente de ficção: duas experiências imaginadas, duas realidades fictícias embora possíveis: um conto protagonizado novamente pela música e uma aventura desenvolvida no caminho de Santiago, duas não-realidades donde paradoxalmente todos nos podemos reconhecer.

 

P.S.

Vocês é que podem procurá-lo nos endereços:

livro:
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ebook:

http://www.amazon.es/%C3%80s-voltas-com-sonho-ebook/dp/B00CD58G7O/ref=dp_kinw_strp_1

 

E como alguma vez falharam estes endereços, também podem procurar pela autora “Viria Moeta” tanto em http://www.amazon.es como em http://www.amazon.com


Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome. (Clarice Lispector)

Perto do Coração Selvagem, no clube Amálgama (Corunha)

Dentro da campanha feminista da Corunha “8 de março não é um dia, é toda uma vida!” no Clube de Leitura Amálgama conbinamos para o sábado 6 de julho às 18h no Café da Guiné (Rua São José nas Atochas) para falarmos sobre o livro da feminista brasileira Clarice Lispector “Perto do Coração Selvagem”.

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Clarice Lispector (Tchetchelnik Ucrânia 1925 – Rio de Janeiro RJ 1977) passou a infância em Recife e em 1937 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em direito. Estreou na literatura ainda muito jovem com o romance Perto do Coração Selvagem (1943), que teve calorosa acolhida da crítica e recebeu o Prêmio Graça Aranha.

Em 1944, recém-casada com um diplomata, viajou para Nápoles, onde serviu num hospital durante os últimos meses da Segunda Guerra. Depois de uma longa estada na Suíça e Estados Unidos, voltou a morar no Rio de Janeiro. Entre suas obras mais importantes estão as reuniões de contos A Legião Estrangeira (1964) e Laços de Família (1972) e os romances A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977).

Clarice Lispector começou a colaborar na imprensa em 1942 e, ao longo de toda a vida, nunca se desvinculou totalmente do jornalismo. Trabalhou na Agência Nacional e nos jornais A Noite e Diário da Noite. Foi colunista do Correio da Manhã e realizou diversas entrevistas para a revista Manchete. A autora também foi cronista do Jornal do Brasil. Produzidos entre 1967 e 1973, esses textos estão reunidos no volume A Descoberta do Mundo.

“Perto do Coração Selvagem” (1943)

A vida de Joana é contada desde a infância até a idade adulta através de uma fusão temporal entre o presente e o passado. A infância junto ao pai, a mudança para a casa da tia, a ida para o internato, a descoberta da puberdade, o professor ensinando-lhe a viver, o casamento com Otávio. Todos estes fatos passam pela narrativa, mas o que fica em primeiro plano é a geografia interior de Joana. Ela parece estar sempre em busca de uma revelação. Inquieta, analisa instante por instante, entrega-se àquilo que não compreende, sem receio de romper com tudo o que aprendeu e inaugurar-se numa nova vida. Ela se faz muitas perguntas, mas nunca encontra a resposta.

“Sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro!”

Pode encomendar o livro de Clarice Lispector na Livraria Suevia (R. Vila de Negreira, 32, no bairro da Agra do Orçám. 690 22 83 91 / 981 90 76 38 – livros.gz@gmail.comhttp://www.facebook.com/LibrariaSuevia)

Clube de Leitura Amálgama
A amálgama é a fusão de dois ou mais elementos que sempre produz algo novo.
O Clube de Leitura Amálgama nasce na Corunha com a vontade de criar um espaço onde poder partilhar perspetivas e olhares diferentes sobre a literatura galego-portuguesa.

Informações no facebook Amálgama – email amalgamadacorunha@gmail.com


Koldat-Koldita-Koldé: Abre-te, Porta do Além

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O Mistério da Escada Interior, em Tuga-Lugo-Lendo

Adela Figueroa apresentou O Mistério da Escada Interior na EOI de Lugo no dia 15 de maio. A atividade era organizada pelo departamento de português da escola e o clube de leitura Tuga-Lugo-Lendo.

Depois de A Xanela Aberta (Poesia) e de Madeira de Mulher (narrativa), Adela envereda neste livro pelos trilhos do Teatro Infantil, de mãos dadas com a ilustradora Celsa Sánchez.

O campeonato mundial de pool – que se realiza em Lugo todos os anos – é o ponto de partida da história. Chinto, um menino de 8 anos, consegue uma boa de bilhar que acaba caindo por uma das grades que dão passagem aos corredores interiores da muralha de Lugo. Chinto e a sua irmã Nela descem ao interior da muralha, onde encontram Cássio, filho de um soldado ao serviço de Roma e de uma princesa local. Cássio continua à espera do regresso do seu pai Gálico, com que começara a jogar uma partida do jogo romano do Décim Scripta.

A peça conduz-nos então do Lugo atual para o Lucus romano e para a Kallaikia céltica que daria nome à Gallaecia. Da mão da Adela e da Celsa viajamos também à Cidade do Faro, onde combatem as hostes do brigante Brigaom e o soldado Gáulico, gaulês ao serviço de Roma.

Apesar das muralhas e das brigas entre exércitos, é esta uma peça de encontros entre mundos diversos: o de hoje e da antiguidade; o de Roma e os povoadores prévios da Galiza — e nomeadamente entre o mundo dos vivos e o mundo do além.

A Porta ao Além da freguesia de Oburiz (Guitiriz) joga um papel importante no fim de peça, que não desvendaremos aqui. Curiosamente, alguns membros do nosso clube de leitura visitaram nesta mesma primavera a Portalém do Monte do Seixo, em Cerdedo, numa excursão organizada pelo departamento de galego da escola.

A apresentação da Adela foi feita com recurso às – inspiradíssimas – imagens da pintora Celsa Sánchez. E acabamos todos de mãos dadas recitando as palavras mágicas Koldat Koldita Koldé. Ficamos também a saber a incrível estória da Rua das Estântegas, ao pé das muralhas e no local que antigamente ocupava uma necrópole romana.

Muitos dos assistentes quiseram ir para a casa com uma edição do livro, o que demonstra que, como referiu a Belém, há contos que são para crianças de 0 a 100 anos.

Oxalá que a peça venha a ser representada por miúdos ou graúdos, e que a Adela continue a aproveitar a bem merecida reforma para escrever muito mais. De Tuga-Lugo-Lendo, obrigados a ela e a todos os assistentes ao evento.

Joseph

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Kalaallit Nunaat

Fran Maseda, de Lugo

Amada Sedna,

Escrevo­-te  esta  carta  para  contar­-te  como me sinto e porque  me tenho que afastar de ti  para  sempre.  O  caso é que não posso seguir assim, porque não suportarei ver a pessoa que amo  com  outro.  Sei  que  devo   aceitá-­lo,  mas  isso, queima-­me; e come­-me a alma  por dentro, pelo que devo partir.

Uma  vida  não  alcança  para  conhecer  os mistérios que se escondem no coração duma mulher,  mas  cinquenta  anos  são suficientes para  calar  as  manias  duma  pessoa. É por isso que sei perfeitamente  que te  encaminharás  em  direção  ao  nosso   quarto,  enquanto cantarolas uma melodia e os teus pés descalços se deslizam pelo chão de madeira de pino, incapaz de superar o  som  da  música,  de  dança,   certamente.  Lá  tirarás  gracilmente  os  puxadores  da  cómoda,  na qual  se  acha  a  tua  caixa  ametista  de  lembranças,  feita  e  pintada  pelas  tuas  mãos  etéreas.  Ao abri­-la fitarás ausente,  por  um  segundo,  o  horizonte  marinho pela janela e  depois abaixarás os teus  olhos  sob  o  conjunto  de  envelopes  velhos   e  amarelos,  para  a  seguir  desapertar  o  nó de seda azul  elétrico  que  os  envolve.  De  todos  eles,  escolherás  o  que  se  acha  em  primeiro lugar, puxando com meiguice das manuseadas folhas do seu interior.

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Embora  se  tenham  passado  várias  décadas  da  primeira  campanha do bacalhau, ainda lembro  bem  o  dia  em  que  eu  vi  a  filha  do  temido  ex­-campeão  dinamarquês  de  luta  livre, Jacob Olsen, por  trás  do  balcão  do  Kalaallit Nunaat.  Eu  era  pescador  verde,  também na vida,  fugido  dos  bairros  de  lata  do  Porto,  que  se  encontrava  agora  passando  um inovador Natal  nevado  na  ilha  maior  do mundo. Na  estalagem  e  com  uma  garrafa  de aguardente  na  mão,  tive  uma  visão  que  não sabia se  era  saída  dum  livro de geografia ou mais própria  do  efeito  do  álcool,  e  revelou­-se  ante  mim  uma  esquimó  de  nariz  chata  e  cumprida, avultadas  bochechas  vivas,  agasalhados  olhos  verdes,  produto  da  mistura,  e  esguia  figura, para  o  comum  da  sua  raça.  Era Sedna,  a  única  filha  do  Jacob Olsen.  Namorei­-me imediatamente  e  desde  então  adivinhei  que  lá  estava  o  meu  lar.  Usei  os   meses  que  restavam até  primavera   para  te  conquistar  e  finalmente  perder­me  para  sempre  entre  os  teus  beiços  e mergulhar­-me na terra nova do teu sexo.

Os  meus  colegas  comentaram  que  eu  estava  louco  pela  minha  decisão  de  ficar  mas nada  me  retinha  em  Portugal.  Os  começos  foram  duros e usava um velho dóris para  ganhar o meu  sustento  e  demonstrar-­lhe  ao  teu  pai  que eu era um homem digno de ti. Após a morte de Jacob, chegaram os tempos como encarregados da estalagem, os filhos…

Sedna,  fomos  muito  felizes  e  agora  não  sei  como  despedir­-me  de  ti,  não  sei como se diz  adeus,  como  se  fecha  uma  porta  e  se  esquece  tudo.  Não  posso  e  não  quero,  parece-­me muito  injusto  perder-­te  assim  desta  forma.  Mas  tenho  que  aprender  a  viver  com  isso.

Contudo,  o  medo  atinge­-me,  não  porque  ignore  como  estar  sem  ti,  se  não  porque  esta peçonhenta  enfermidade  apagar­-te-­á  da  minha  memória.  A  ti, minha aak, minha companheira de  vida,  minha  amiga, minha confidente, minha amante, o meu tudo. Por isso quero que tenhas mesmo  a  certeza,  antes  de  deixar­te  nas  mãos  dum  outro  eu  desmemoriado,  de  que  nunca nada jamais poderá apagar-­te do meu coração.

Sedna,  só me resta por pedir-­te que me lembres, que nós lembremos e que saibas que te  amei  profundamente,  até  à  extenuação,  para  além  do  esquecimento  e  estas  letras  de lágrimas que te deixo.