Pega no livro

Clubes de leitura da Galiza com algum livro em português


A Rainha Ginga (Eduardo Agualusa)

Um bom livro na opinião dos leitores do clube. Produzido trás uma abundante documentação narra uns feitos históricos pouquíssimo conhecidos na Europa e menos ainda na Galiza, onde a nossa relação com a África se passa por caminhos com várias derivadas.
As guerras da Angola, conquistada por portugueses, holandeses e entremeias, coma sempre, os distintos bandos locais, a favor ou em contra dos invasores em função dos próprios interesses ou das próprias forças.
Peculiar vida a desta rainha que se nos introduz numa narração que tenta tenhamos certa perspectiva do ponto de vista da Ginga nativa. Essa visão será a través dos olhos dum padre brasileiro.
E como mostra desta variopinta peculiaridade da rainha vemos os nomes que possuiu na sua vida: Ana de Sousa, Ngola Ana Nzinga Mbande e Rainha Ginga.
Pela parte dos reproches fica o de que o título dá a entender que a rainha vai estar presente na maior parte do livro, não sendo assim por mor do protagonismo do padre narrador, que passa meses inteiros (e por tanto capítulos inteiros) em lutas e intrigas na sua terra natal de Pernambuco, onde portugueses e holandeses também dirimiam as suas disputas.


As visitas do Dr. Valdez, em Tuga-Lugo-Lendo

No último sábado de janeiro, o centro sociocultural Maruxa Mallo recebeu As visitas do Dr. Valdez da mão do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho e o clube de leitura Tuga-Lugo-Lendo. Ainda que a sua conversa foi valorada positivamente – de facto conseguiu uma média de 7.4 -, o certo é que muitos defendemos o seu consumo em doses moderadas, para evitar possíveis efeitos secundários, tais como excesso e aturdimento, derivados de uma prosa em ocasiões demasiado densa.

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Esta história leva-nos ao período da independência de Moçambique através das vidas dos seus protagonistas, duas irmãs de avançada idade e o seu criado Vicente. Perante a insegurança gerada pela guerra, Caetana, a cabeça de família, decide deslocar-se desde o seu coqueiral na Ilha do Ibo até à cidade da Beira junto com a sua irmã Amélia, quem padece importantes problemas mentais e físicos. Por meio de uma estrutura em constante movimento do presente para o passado, reconstruímos as suas vidas e a difícil relação fraternal que entre elas existiu já desde crianças: Quantas histórias dentro de uma mesma história!

Com o objetivo de reavivar uma Amélia cada vez mais distante, Vicente propõe que o doutor Valdez, velho amigo da família falecido há tempo, visite de novo as mulheres, adotando ele a sua aparência e personalidade. Mas conforme as reuniões vão passando, médico e criado vão convertendo-se numa mesma pessoa. Aproveita Vicente este jogo de mentiras e teatralização para ver como era a vista do outro lado e desfrutar de privilégios exclusivos, mas tão simples como sentar no sofá das suas patroas. Além disso, amparado no status social do médico, adquire uma voz mais rebelde, que na sua condição de criado não teria alcançado. O ponto culminante desta fusão produz-se no momento em que Vicente aparece na casa com uma máscara indígena, que durante o enfrentamento com Caetana chega a tirar, desvelando a sua identidade ante uma Amélia aparentemente crédula. Quando as irmãs ficam a sós, descobre-se que ela tinha virado o feitiço contra o feiticeiro todo esse tempo:

É tarde. Tempo de acender as luzes para contrariar as penumbras que se vêm instalando. Vicente levanta-se, murmura uma despedida delicada e retira-se, fechando cuidadosamente a porta.

Para trás, na sala, fica um resto de silêncio.

-Obrigada, Caetana –acabou por dizer Sá Amélia.

-Obrigada porquê, irmã?

-Por teres servido finalmente a cerveja ao rapaz.

Nesse pequeno microcosmos do seu fogar, Caetana persegue obsessivamente preservar a ordem tradicional das coisas, mas as mudanças também entram na casa, lá na da Ilha do Ibo, onde o mato está a recuperar os terrenos que lhe foram roubados há muito tempo, imagem exemplificadora da degradação que sofrem as hierarquias velhas de muitos anos, que pareciam de pedra e cal mas que não passavam afinal de pequenos acasos transitórios; ou no apartamento da cidade, onde Vicente é a ligação com a realidade externa e, em consequência, importador das mudanças que estão a acontecer, mas que o rapaz ainda tem que fazer suas, numa luta interior entre o que lhe foi ensinado pelo pai e o que ele defende a partir da sua experiência: Queria mudar mas não sabia como; queria partir mas eram poderosas as forças que o retinham no mesmo lugar.

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A ilha do Ibo, Moçambique (fonte da imagem: pt.wikipedia.org)

Um após outro fomos comentando numerosos fragmentos do livro, intervalos vitais marcados pelos objetos –bonecas rotas que competem com pulseiras de marfim, moedas de cunho antigo, máscaras e bigodes de algodão-, bem como pelas palavras e os olhares: Porque ao escrever temos a serenidade de estarmos sós falando com os outros. E porquê? Porque não nos pesa o embaraço da sua presença transcrito nos olhares que recebemos. Às vezes são reconfortantes – como a defesa de Ana Bessa da sua filha Amélia contra os desprezos do pseudo-padrasto-; ofensivas e conflituosas –como as de um Jeremias bêbado que pretende a controvérsia com Vicente; rituais e de iniciação – como as empregadas durante o rito de passagem à idade adulta; ou sussurrantes e íntimas, dos amantes que estão a aprender a conhecer-se; palavras da tradição oral, aquelas que Vicente canta na língua indígena para acalmar Amélia, ou escritas, recolhidas nas missivas intercambiadas entre Caetana e Cosme Paulino; palavras que ligam as pessoas a laços invisíveis mas inquebrantáveis, presentes na lealdade dos criados aos seus patrões, apesar das humilhações a que são submetidos; palavras que nascem no coração mas são apagadas na garganta, aplacadas pelo peso das convenções, tantas vezes provado na incomunicação entre Caetana e Vicente de olhos no chão, olhando para dentro de si própios; ou o encontro terrível que lhe revelou o poder que podem ter as palavras quando ela própria, sendo criança, desejou a morte da Amélia, e quase a obtém –capítulo apontado por alguns como ponto de inflexão na relação entre as duas irmãs e no qual se inaugura o tema recorrente da culpa. E sobre todo, palavras que ficam por escrever no desenlace aberto do romance, páginas em branco para Caetana, com umas expetativas limitadas, e para um Vicente com um futuro muito mais favorável, em paralelo ao do nascente regime do seu país.

E os do Tuga-Lugo-Lendo, como a Caetana, também abandonamos Moçambique em direção a terras lusas, já que a próxima leitura, intitulada Alma, foi escrita polo autor português Manuel Alegre. Aí estaremos no próximo dia 14 de março para comentar como foi esta nova viagem literária. Esperamos-vos!

Silvia, de Tuga-Lugo-Lendo, escreveu esta crónica. Iago verteu o texto original ao português.

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Fonte da imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Beira_%28Mo%C3%A7ambique%29