Pega no livro

Clubes de leitura da Galiza com algum livro em português


Está frio na Terra Nova

Imagem

 

Antom Labranha. (Imagem tirada do google.pt)

(Gratidão à Helena Queirós pelas correções linguísticas)

 

Lentamente, a fumaça do cigarro ascendia desmaiando a sua face, volteando caprichosa na ponta de um nariz colorido que agradecia ao infinito aquele atrito suave e quente que o acariciava. O corpo bem envolvido em agasalhadoras roupas, as mãos nos bolsos e a cabeça protegida sob um gorro de lã que lhe tecera sua mãe. Hesitante nos lábios gretados, o charuto aceso desafiava o ar gelado.

Entre passa e passa, profundamente sorvidas, tragicamente reconfortantes, a nostalgia trouxe-lhe ao imaginário o distante lar que tinha ficado para trás, a duas mil milhas náuticas de distância. Vinte dias de navegação de vela e vapor à procura dos ricos pesqueiros de bacalhau do Labrador Sea estabeleciam o inapelável afastamento. Era esse um mar postimeiro do Atlântico Norte, abocando já o Árctico, que vestia suas ourelas de branco glaciar, intenso e luminoso como flor de cerejeira na Primavera.

A costeira nos mares do norte prometia fartura, como já tinha acontecido em ocasiões anteriores, com abundantes capturas. Mas enquanto não chegava, Adriano sentia saudades do jantar quente que a mãe lhe tinha sempre preparado quando em noites chuvosas de inverno voltava para casa depois de cada maré, então sempre de imprevisível resultado. Na altura ele andava com “rascos”[1] na pescaria costeira, nas redondezas marítimas da sua aldeia. Pesca ao dia, faina sem promissão.

Por mais de uma vez ele tinha tido que compartilhar com o “Lhoni” gato fiel na caça de ratos, astuto e guloso, o apetecível prato maternalmente preparado. ­Não te vás sem o leite! disse-lhe uma vez enquanto o bichano fugia escadas abaixo apertando nos dentes um bife de um quarto de quilo. Minha cabeça de vento! Que será de ti quando eu faltar? fala para ele a mãe, cheia de inquietação.

Chegou a hora da tarefa, do trabalho duro e sem descanso. E tal como se previa, a safra foi boa. O peixe que mordia os inúmeros anzóis que cada marinheiro jogava, a remo entre as ondas do oceano, enchia a comprida dorna que se alargava na ré do seu próprio dóri, o pequenino saveiro, embarcação de fundo chato a qual, embora não fosse exclusiva deles senão que era propriedade da companhia naval, luzia orgulhosa o nome da mulher, da filha, da namorada ou mesmo, caso do nosso Adriano, da mãe. E sendo o bacalhau peixe muito abundante naquelas latitudes, enchia também de alegria os peitos daqueles homens que viam, assim, recompensada tão penosa e arriscada odisseia.

 

Logo de ser subido abordo do navio-mãe, o bacalhau era esfaqueado desde a queixada até à cauda, esventrado e estripado. Tirava-se-lhe a cabeça e a espinha, e ficava assim aberto todo, espalmado e quedo como mão estendida à espera de qualquer esmola, qualquer prodígio, qualquer milagre. Depois era salgado e arrumado nos caixotes de pinho e dali acarretado para o imenso porão.

Agora cumpre dirigir-se ao porto, refrigerar urgentemente o pescado e abastecer, para depois empreender o retorno aos lares respectivos, em esta aldeia, nessa vila, naquela, numa outra de acolá ou mais ao longe, todas no litoral galego-português. Antes haviam parar em Ferrol a descarregar, na fábrica que ali tem a Pysbe (Pesqueiras e Secadouros de Bacalhau da Hespanha, cobiçosa companhia comercial da que era primeiro accionista o rei Afonso XIII).

 

Depois hão-de chegar alguns dias de folga e já estão prontos a iniciar a próxima campanha. Após a da Primavera vinha, ferida, a do Verão, para quem puder. O trabalho lixava a gente: era fatigante e muito perigoso, enregelavam as mãos, abatiam-nos golpes de chofre de ondas gigantescas e mesmo alguns tinham morrido afogados ao caírem do convés para o mar. Outros se tinham perdido na solidão do dóri envolvidos num nevoeiro súbito e já nunca mais o barco havia ter com eles, vogando em desespero ate se arrebentar. E, ainda estafados, alguns moços voltavam. Se calhar pelo ganho, guloso e necessário. Talvez porque uma disposição ministerial da Defesa trocava as obrigas de serviço militar por três anos na pesca do devecido bacalhau: fonte do azeite remediador de carências no crescimento das crianças, alimento básico da culinária popular, prato de mesa essencial na consoada do Natal religiosamente preparado com couve-flor e batata, complementado para sobremesa com massa de aletria e filhoses de abóbora passados por calda de açúcar: sonhos polvilhados de fantasia.  Então voltariam mesmo por livrar da tropa. Seja pelo que for, voltavam.

Aportam em Harbour Grace, ao sul da ilha da Terra Nova, na calmosa Baía da Conceição. Uma fileira de tascas e cabarés que anunciam todos os tipos de refeições, bebidas e diversões aguarda a chegada dos esforçados tripulantes do “Ponta Candeeira II”, cobiçosos de pisar terra firme. Ambiente, muito ambiente para curtir, à espera de saciar as ânsias acumuladas nas frias jornadas de trabalho. E foi naquela tarde que conheceram o Mangsarik, o esquimó, perito caçador de focas. Andava a vender as peles das suas presas na Rua dos Mercadores, na parte baixa da cidade, perto do mar.

 

Seguiram quatro dias de afazeres cansativos, reparando o barco, transportando víveres para o retorno e grandes e inúmeros blocos de gelo que deviam era arrefecer as câmaras do porão enquanto sulcavam o Atlântico confiando seu destino na rosa-dos-ventos, em rumo à Galiza.

 

E após o dia vinha a noite de magia, de festa até de madrugada. Apenas uma noite bastara para que Maçarico, como eles lhe chamavam, se entusiasmara com aquelas pessoas, chegadas dos povos fisterrões que desde Aveiro até Cedeira seguiam a tradição secular de irem tentar a sorte às gélidas pescarias dos mares do Norte. E não tanto se ligou a eles o esquimó por lhe terem comprado muitas peles depois de alguns regateios cómicos, mas pela engraçada ironia que se percebia na entoação que davam às suas palavras e que o “homem do gelo” acertava a intuir. Além disso, mormente pela vontade de viver que florescia nos cantares que celebravam entre copo e copo de aguardente.

Fascinado por aqueles marinheiros vindos de tão longe para ser nesta beira-mar como na sua própria terra, quis ir com eles e ofereceu em pagamento da passagem a pele da última foca que deveria caçar na sua vida.

Avisar, avisaram-no. Lá vai muito calor e você está habituado a este frio doente que rói os ossos, diziam-lhe uma e outra vez. Pode ser que o esquimó não entendesse bem o que os marinheiros lhe falavam ou mesmo que ele fosse muito teimoso e não queria fazer caso das advertências. Mangsarik ir Ghalitza!, repetia insistentemente, de modo a não haver outro remédio senão subi-lo a bordo.

A nove dias de navegação rumo a sudeste, quando a silhueta dos últimos ilhéus se desmaiava na memória depois de ter desaparecido dos olhos, sente-se retroceder o frio deixando passar os ventos mornos que confirmavam a rota. E o Maçarico reclamava do calor, e como não parava, e teimoso era quanto se possa imaginar, o Adriano e três marinheiros mais deram em apanhá-lo e metê-lo no porão, o único lugar do barco que parecia garantir a frescura que anelava.

Onde é que vocês vão com ele…? interpôs-se o patrão, não vêem que vai congelar?
– O quê…! Congelar? Se está muito mais frio na Terra Nova, retorquiram eles.

O esquimó achou o sítio muito familiar pois os blocos de gelo estavam perfeitamente colocados pelo chão oblíquo, curvado em forma de abóbada invertida que lhe fez lembrar o iglu onde nasceu e em pequeno morou: a cabana uterina, a casa. Ele também não deu protesto nenhum porque pensava que o motivo de o levar ali abaixo era ocultá-lo da polícia do mar, pensamento que reforçou quando um catre com um enxergão de linho e palha lhe deu nas vistas. Ajeitou o seu ninho.

 

Para o outro dia levaram-lhe o almoço, e encontraram-no muito contente comendo peixe cru, como quem está a saborear iguarias, lambendo água do próprio gelo derretido. Então o Mangsarik riu brincalhão ao ver as caras de nojo dos marinheiros, que lhe traziam uma porção fumegante de caldeirada, com a sua ração de pão de centeio e uma canequinha de vinho do Porto, um tawnie colheita. Então concluíram que não precisava mais deles, que ali é que estava bem, e ficaram descansados por já não ter que olhar pelo exótico passageiro. Deixaram lá ficar a travessa de madeira com o requintado manjar, e foram embora.

Passaram os dias. O frio polar já se tinha esquecido por completo afora as câmaras do porão onde os blocos de gelo resistiam quase íntegros, numa friagem calculada para uma travessia que na primeira semana decorria ainda em águas arrefecidas em que mergulhava a carena do barco, mas depois era só vencer as tépidas temperaturas. Na altura, o esquimó, já esquecido pelos marinheiros, pelo mundo todo, tirava as roupas que o transpirar continuado naquele insuportável frio de rachar foi enrijando e colando a seu corpo, e causavam-lhe grande incómodo.  Então, nu como viera ao mundo, enfraquecido por um enjoo persistente, deitou-se sobre o enxergão e ali apanhou um sono inquebrantável. No final, ao longe, as falésias de nossas costas adivinham-se num horizonte nebuloso que se aproxima espreguiçando-se com os primeiros raios do sol da manhã.

Ide tomar conta desse homem, que nada mais dele se soube, se calhar mesmo terá morrido de frio! repreendeu-os o arrais gritando desde a proa aos marinheiros, enquanto calculava o tempo que teriam para chegar ao destino.

Adriano desceu às câmaras pensando no bem que lhe tinham caído ao Maçarico, duvidando ainda se nelas iria tanta frieza como entre os glaciares da Gronelândia.

Ele está morto, está morto! voltou de repente aos berros escadas acima. Tremia-lhe o coração, não podia acreditar no que tinha acontecido.

Não vos disse eu? insurgia-se o patrão desesperado, ralhando aos marinheiros. Não lhes disse que ia morrer de frio?

De friiiiio? retrucou o Adriano prolongando o “i” da palavra num eco surdo e sonolento para, a seguir, proferir com contundência: Foi que morreu de calor, ele é que estava em pelotas!


[1] Rascos na Galiza é a denominação duma arte de pesca com rede, chumbada numa corda de maneira a ir ao fundo; numa outra corda vão enfiadas umas rolhas de jeito a, mergulhada até ao fundo, manter-se erguida como uma aranheira, uma armadilha na qual ficam presos peixes como o tamboril ou mariscos como a lagosta.

 


Pega na estória

Da Pega no Livro animamos a escrever um conto relacionado com a pesca do bacalhau.

pesca do bacalhau-doris

Gadus Morhua é o nome científico do bacalhau – será morhua de amor, morhua de morte, ou morhua de morder as lascas do peixe?

A pesca do bacalhau tem uma longa história, envolvendo perigos, dificuldades extremas, encontros e desencontros de povos diversos e alguma aventura digna de ser contada. Portugueses e bascos tiveram um grande protagonismo nesta história, mas não apenas eles.

As propostas de escrita que sugerimos são as seguintes:

– Um conto de terror, ambientado num barco bacalhoeiro, em águas do Atlântico Norte.
– Um conto de aventuras, amor e erotismo, envolvendo o encontro de de duas pessoas de duas origens diferentes, de alguma maneira envolvidas na pesca do bacalhau.
– Qualquer outra estória que te ocorra em relação ao bacalhau.

Podeis enviar os textos a peganolivro@gmail.com ou a lugofonia@gmail.com

Fonte da imagem: http://anibaljosedematos.blogspot.com.es/2012/07/a-imagem-do-dia.html(Tirada do capa do Jornal do Pescador, – n.º 239, de dezembro de 1958)


Uma leitura particular de um mestre em divagações

João Lopes Facal
Clube santengrácia, Compostela, IV 2013

Tivemos estoutro dia o primeiro encontro do ano do Clube santengrácia. A sede, generosamente cedida para a ocasião, foi desta vez a livraria Ciranda de Compostela onde um pode achar a melhor escolha de livros de temática feminista e galaico-portuguesa ou luso-brasileira, ou como gostem os senhores dizer. A obra que nos ocupou foi Esaú e Jacó do mestre Machado de Assis (1839-1908). Um clássico das letras brasileiras, fundador e primeiro presidente por aclamação da Academia Brasileira das Letras fundada lá no ano 1897.
Machado é um clássico e todo clássico requer um bocadinho de paciência antes de ele entregar o seu segredo. Segredo muito particular o de Machado; pobre de nascimento, autodidacta, jornalista, e observador impenitente de um Brasil adolescente ainda mas satisfeito já da sua qualidade de povo eleito e cadinho de raças e culturas: O mulato -branco e negro- o caboclo -branco e indígena- e outras secretas misturas que fizeram grande o país. Com uma consulta de duas senhoras brancas da boa sociedade -uma embaraçada e a sua irmã- a uma adivinha cabocla começa a história de Esaú e Jacó que era a nossa leitura.
Opinávamos que um clássico merece um certo respeito mas no caso de Machado mais do que respeito abertura ao jogo da ironia e a divagação. Machado gosta de trazer o leitor a pé dele para piscar-lhe um olho cúmplice e convertê-lo em co-autor. Olhe lá -pode dizer, por exemplo- a senhora não vai crer –Machado gosta de dirigir-se à leitora feminina- o que agora vai acontecer mas…
Machado amava às mulheres porque amou muito à sua esposa, Carolina, à qual lembrou num soneto que parece um ramo de flores delicadas:
“Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
(…)
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.”
Carolina era uma portuguesa do Porto culta e sensível, segundo dizem os entendidos, que ensinou a Machado a ler a grande literatura europeia e acabou por exercer de leal crítica literária do grande escritor.
Machado adora interromper as suas histórias para interpelar @ leitor. No capítulo XXVII (de apenas uns parágrafos) interrompe o fio da narração dos dois gémeos opostos e competidores desde antes de nascer para dar entrada à voz da leitora que pergunta se não será que quando os gémeos cheguem a adultos vão acabar por se apaixonar da mesma mulher. Machado não perde a calma: “O que a senhora deseja, amiga minha é chegar já ao capítulo dos amores que é o seu interesse particular nos livros (…) Francamente eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente”.
Outras vezes o narrador sente a obrigação de pedir desculpas por introduzir um salto temporal que interrompe o fio do relato. É o que acontece no capítulo XXII, que dura apenas um parágrafo: “Os estados de alma que de aqui nasceram davam matéria a um capítulo especial se eu não preferisse agora um salto a 1886. O salto é grande, mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode não bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro”. Puro Machado.
A ironia e a tonalidade mais grata a Machado de Assis. O capítulo XL do romance, titulado Recuerdos -assim, em espanhol- narra um namorico do Conselheiro Aires –diplomata, céptico, utente de monóculo- com uma actriz de Caracas que cantava sevilhanas:
“-Que rumor é este, Carmen? perguntou ele entre duas carícias.
-Nao se assuste, amigo meu; é o governo que cai.
-Mas eu ouço exclamações
– Então é o governo que sobe”.
Os anos da madureza de Joaquim Machado de Assis foram de mudanças. No ano 1889 em que Machado cumpria os seus cinquenta, Brasil abolia a escravatura e mudava de Império a República mediante um golpe militar republicano liderado pelo general Deodoro da Fonseca. A República trouxe a bandeira mais eloquente que no mundo haja com um lema positivista no seu centro: “Ordem e Progresso”. O lema, que procede do filósofo social francês Auguste Comte, paira sobre uma constelação de estrelas que pretendem retratar o céu carioca na manhã de 15 de novembro de 1889 às doze horas siderais. Ciência astronómica e fé no progresso indefinido: uma constelação embriagadora que acompanhou os últimos anos do romancista de olho céptico e tolerante. A opinião de Machado sobre o cientismo positivista -ao estilo do Jules Verne para entender-nos- é bem visível num dos seus contos, “O alienista”, onde nos conta a paixão de um cientista da saúde mental por encerrar cada vez mais gente no seu manicómio por suspeita de desequilíbrio mental generalizado até levar-nos à conclusão de quem é o verdadeiro alienado. No nosso romance, o elegante diplomata Aires, que é o autêntico narrador da história de Esaú e Jacó, bem pode ser um protótipo de aqueles sisudos cavalheiros republicanos adeptos ao progresso e à alta cultura: “Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode a Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página de Cervantes, outra de Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu”.
Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis, uma olhada lúcida e irónica carregada de ambiguidade. O romance da vida paralela e discrepante de Pedro e Paulo, filhos gémeos de Natividade e Agostinho Santos que nascem rivais em tudo. Paulo é impulsivo e republicano, Pedro dissimulado e conservador; um mesmo amor único e impossível acaba por uni-los e separá-los. Mas, como bem poderia dizer o próprio Machado: olhe cá amiga, eu não vou desvendar agora a história que é para ser lida se a senhora tiver vagar e gosto pelas reviravoltas e variedades da alma humana.